domingo, 8 de março de 2015

VAMOS À CAÇA


À Memória do meu Tio Justo
Tio Justo 1931


A voz forte de comando e com um timbre de oratória, ressoa ainda nos meus ouvidos como se tivesse sido ontem (e já lá vão quarenta e cinco anos) com a mensagem proferida pelo meu tio Justo, primo mais novo da minha bisavó materna aquando da visita de passagem pela aldeia da minha mãe (Avelelas de Monforte) a caminho de Chaves, onde eu ia iniciar o Liceu.




Meu Rapaz! Como vais começar a vida de “graúdo”, quero deixar-te uns tantos conselhos que nunca deves esquecer:
- Quando estiveres doente com gripe, ao deitar, bebe um “copaço” de vinho bem quente com mel, que é o melhor remédio para matar os micróbios.
- Quando acordares com dor de barriga, “peida-te”.
- Quando te doerem os rins, ficares amarelo ou estiveres a ver mal, então vai ao “doutor”.
- Quando andares ralado por causa das mulheres, chateado com a falta de dinheiro ou “fod…” com outros problemas da vida...vai à caça!
A leitura que fiz com os meus dez anos de idade a estes comentários, traduziu-se em que caçar deveria ser bom e que o velho tinha muita piada particularmente em relação aos palavrões.
Escusado será dizer que este meu antepassado era caçador, e ao que se dizia...que caçador!
Justo de nome e justiceiro como o diabo para com a caça. Comentava-se que mesmo então, já na casa dos oitenta, não perdoava ainda às perdizes mais distraídas que se lhes cruzassem na mira.
Oriundo de uma família de agricultores medianamente abastada, solteirão e bom vivã, pouco mais fez na vida do que namoriscar e caçar, motivo porque se tornou um especialista em ambas as “artes”.
Poucos anos mais tarde, e na verdade não pelos conselhos que ele me havia dado mas por motivos naturalmente bem mais profundos, comecei a calcorrear os montes à procura das perdizes com uma velha “espanhola” calibre dezasseis sem registo, quer chovesse, nevasse ou fizesse sol, quer andasse aborrecido, alegre ou “assim-assim”.
Direi por conseguinte que a minha paixão pela caça (que veio cedo e para ficar), se não deveu propriamente a influências ou tradições familiares, mas sim a um encantamento natural que foi progredindo com as várias experiências vividas desde a meninice.
No entanto, e à medida que os anos foram decorrendo, o caçar passou para alem da paixão que ainda me move, a ser também e principalmente, um extraordinário “escape” na minha agitada vida pessoal e profissional.
Esta nova forma de encarar a caça, fez-me trazer à memória aquele chorrilho do meu querido familiar e recordar com alguma admiração na sabedoria implícita nas suas palavras.
De tal modo, que por diversas vezes nestes últimos anos não resisti ao impulso de retransmitir a muito amigos e conhecidos, não aquela receita para as diversas doenças de ordem física, mas esse eficaz “medicamento” para os males que nos afectam muitas vezes o juízo, dizendo-lhes: vão à caça.
 Alem deste meu tio-bisavô, na família a caçar, (década de sessenta), conheci também o meu tio-avô Justino, um irmão da minha avó, e o “Ti” Paulino, um cunhado do meu avô.
O primeiro, empresário bem-sucedido na cidade do Porto, raro era o mês na época de caça que não se deslocasse às terras de Monforte e Rio Livre (sobranceiras ao seu lindo castelo), sempre acompanhado de vários amigos citadinos com o intuito de matarem o vício e levarem o carro cheio de perdizes.
Caçador exímio, que para além de combinar inteligência no caçar com um vasto conhecimento dos terrenos da sua infância, também se fazia acompanhar de boas espingardas e bons cartuchos, condições mais que suficientes nessa época de fartura para o seu grande e reconhecido sucesso.
O segundo, típico homem de Aldeia, agricultor mas também caçador de costado e meio, era um transgressor inveterado que tinha uma característica muito especial e curiosa: sempre que o início da época de caça começava, ele limpava muito bem a sua velha Liege, oleava-a, e de seguida pendurava-a na sala de jantar até ao novo início do “defeso”.
Como o caçar para ele era também um meio de subsistência, a concorrência nos montes e as solicitações para acompanhar e ensinar lugares querençudos aos “fidalgos” da cidade (inclusive o meu Tio Justino, seu parente) não lhe agradava por aí alem, facto pelo qual em todos as épocas de caça à laia de justificação, inventava uns problemazinhos nas “cruzes”.
Lembro-me também de outros episódios relacionados com ele que na altura sem entender muito bem achava caricatos, mas que retractam fielmente o significado que tinham nessa época alguns abates de caça junto do povo rural:
Quando o Ti Paulino cobrava uma raposa ou um “gato bravo”, pendurava-os à porta de casa durante umas horas (mais tarde esfolava-os para vender as peles) e a população ia-lhe lá oferecer cestos com ovos e algumas aves (particularmente galinhas e perus).
Quando por sua vez abatia um lobo, as oferendas eram bem mais interessantes e substanciais, pois até ovelhas incluíam.
Recordo ainda bem o dia, um daqueles gélidos de inverno (talvez Janeiro ou Fevereiro de 1965) em que trouxe consigo carregado numa mula um lobo de proporções enormes com que já havia percorrido todas as aldeias em volta, que lhe rendeu oito ovelhas e quatro ou cinco cabritos, talvez o número de pastores daquela zona. Bem como me lembro, do comentário que então proferiu entre dentes sobre um “fulano de tal”, a quem o lobo já havia morto mais de dez das cento e tal ovelhas que possuía:
- O sovina compensou-me apenas com uma ovelha e pequena, como os pobres, porque não imagina que este abate me custou mais de um mês de esperas e várias cabaças de aguardente para aguentar o frio.
Mas, também caçador embora de características diferentes e que não posso deixar de referir, era o meu pai, cujo prazer da caça consistia nas esperas aos tordos na época fria de inverno debaixo das oliveiras, e às rolas no verão, em tardes muito quentes, junto dos charcos dos ribeiros.
Em miúdo acompanhava-o sempre com o intuito de lhe apanhar a caça e levar a escalfeta (apetrecho que consistia numa espécie de braseira ambulante) que colocávamos debaixo dos pés para aguentar o frio dos dias nevoeirentos, enquanto aguardávamos os tordos em habilidosos esconderijos junto dos olivais.
A caça tradicional aos coelhos e perdizes nunca o entusiasmou, e eu por outro lado também não consegui ter na altura certa engenho suficiente para o convencer.
De qualquer modo, as dificuldades legais e as progressivas exigências para praticar a caça no nosso País, bem cedo o levaram a desistir até mesmo dessas suas pequenas digressões à passarada.
Um dia ainda matou um coelho numa espera aos tordos, passando a comentar com o ar brincalhão que sempre o caracterizou: - “matei-o a cagar”; e de facto matou, e eu testemunhei, mas quem estava a fazer as necessidades não era o coelho...
A última vez que me recordo ele ter vontade de dar uns tiros, já lá vão cerca de quinze anos, foi num soalheiro Domingo depois de almoço em época de tordos.
Para minha surpresa agarrou na espingarda e cartucheira que eu deixara ao fundo das escadas e transmitiu-me que no entretempo de eu tomar o café, ele iria até ao fundo da “vila” esperar uns torditos e matar saudades.
Cerca de uma hora depois quando por lá apareci, confidenciou-me muito aborrecido e intrigado: - não percebo nada disto, já pousaram aqui três que apontei bem, deixaram um grande depenadouro, mas nem os vi fugir nem os vi cair.
Dou-me então conta que na cartucheira que repousava ao seu lado faltavam os cartuchos da borda, lugar onde era costume eu (bem como qualquer caçador nessa época) guardar de reserva para os “imprevistos”, três ou quatro zagalotes.
A explicação para o tão estranho e insólito fenómeno ficou de imediato esclarecida.
Os tordos nem caiam nem fugiam, porque à distância a que ele lhe havia atirado, e com tão áspera carga, os mesmos haviam ficado pura e simplesmente desintegrados.
Deste modo e com grande pena minha, acabei por não desfrutar da sua companhia nem da de qualquer outro familiar próximo no decurso destes quarenta anos de caçadas memoráveis, tão recheadas de bons convívios, grandes amizades e inesquecíveis momentos.
A caça, para quem não saiba, proporciona também e essencialmente estas coisas...
No entanto, companhia e da boa foi coisa que nunca me faltou neste apaixonante e grandioso entretenimento.
Bem hajam àqueles que foram ao longo destes muitos anos os meus companheiros de caça, e que sempre recordarei com prazer e estima:
Na menor - Ti Ernesto, Alfredo, Ilídio, Armando e Totó Felgueiras, Toninho Grangeia, Eduardo, Zé Augusto, Paulino e João Antunes.
Na maior - Luis Lamas, Zé Castro, Dulcínio Grangeia, Luis Mosqueiro, Zé Maria e Zé da Quinta.
… Todos eles (alguns já desaparecidos), uma segunda família, e que continuam a dizer “presente” (mesmo os que estão no além) em cada nova época que inicia.
Mas depois deste divagar pelo tempo e pelas memórias, dou-me conta que a noite vai longa, que os olhos começam a piscar e a lareira já se apagou.
Como são horas de restaurar, pois a vida activa ainda se impõe, vou terminar com um “até sempre” companheiros caçadores, mas também recordando-vos:
Se o dia de amanhã correr menos bem, seja por motivos laborais, problemas financeiros ou desavenças amorosas, reagi com calma e pensai positivo, pois no fim-de-semana que se aproxima... Vamos à caça.


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