quinta-feira, 30 de outubro de 2008

HISTÓRIAS DE CAÇA

A caça oferece-nos um outro "conceito" de vida.
Os momentos são nostálgicos, as vivências infindáveis e as experiências inesgotáveis.
No entanto, temos a obrigação de partilhar alguns desses momentos com os nossos outros "amigos", e também resgista-los, para que no futuro, os nossos futuros seguidores saibam, do que a caça pode proporcionar.
A melhor forma, defendo eu, é contando estórias que fazem história na nossa vida paralela; a da caça.
Deste modo, fica aqui o desafio para todos.
Contem (com alguma verdade) as vossas histórias.
Luis Guimarães

2 comentários:

Anónimo disse...

HISTÓRIAS DE CAÇA
Outubro de 1966 – Torre D. Chama

Ao Alfredo,
meu companheiro, meu amigo, meu “professor”


Mal a fraca luminosidade da manhã raiou, toca a levantar sorrateiramente, e pé ante pé o Alfredo foi ao quarto do pai “sacar” a velha Victor Sarrasqueta que se quedava encostada à parede, mesmo junto à cabeceira do “velhote”.
Eu tinha sido convidado pelo Alfredo, com a devida autorização dos pais de ambos, para dormir nessa noite lá em casa (mas o plano já há muito que estava traçado).
No entanto, como o nosso quarto estava longe da porta de entrada, e por ali seria seriamente perigoso esgueirarmo-nos, o Alfredo que previamente tinha deixado uma corda pendurada da varanda para o “curral”, incitou-me a descer pela dita cuja.
A medo, nos meus 12 anos (o Alfredo com mais 2 do que eu já era um veterano), lá me lancei na respectiva odisseia que a custo concluí, mas com um queimão no braço feito pela corda, ao escorregar com mais velocidade que a devida.
Desta feita há que desprender o Fidalgo (o coelheiro por excelência do pai do Alfredo), e toca a andar.
O nosso destino, como o de quase todos os caçadores, era o “Vale Martinho”, cerro que ficava logo atrás das casas aonde vivíamos.
Espingarda às costas, 5 cartuchos no bolso (carregados com o maior esmero pelo pai do Alfredo e para os quais fez naturalmente grandes planos) e Fidalgo todo entusiasmado na nossa frente.
Em três tempos estávamos no meio do monte, junto a uma pequena horta com couves mirradas, mas que se sabia por ali rondar um coelho,... ou meio.
A manhã nem estava a correr nada mal, três tiros disparados, um coelho à cinta, e ainda dois cartuchos na arma.
Entretanto, íamos controlando o tempo e a situação.
O tempo, porque este corria depressa, e a escapadela não iria ficar por aí.
A situação, porque tínhamos que estar de atalaia, com um olho no monte para ver se algum coelho se esgueirava, outro no horizonte por causa de Venatória, e todos os outros sentidos alerta , ... para a possibilidade de o velhote aparecer.
De facto, como era hábito do velho caçador, pelas 8 horas toca a levantar, meter uma bucha e vestir uma roupa mais gasta, pôr cartucheira à cinta, arrebatar a arma e desandar para Vale Martinho na companhia de seu cão.
Tudo correria dentro da rotina normal, não fora o caso de, ele já todo artilhado, a espingarda não estar no lugar do costume.
A ausência dos garotos no quarto e a falta de sinal do Fidalgo, em breve o esclareceram da situação.
Pois é, mas o Alfredo mais eu, desta vez não nos quedamos pela caça com pescoceiras e buizes, ou as velhas e gastas espingardas de pressão de ar que só expeliam o chumbo à terceira ou quarta tentativa.
Mas, como referia, os meus sentidos estavam atentos ao máximo, à espera do inevitável.
Pelas 9 horas, senti ao longe um chamamento: Ho Alfreeeeedo. Ho Alfreendo.
Fria e calculadamente, fomos dirigindo a caçada para locais menos visíveis, e sempre a desviarmo-nos do chamamento.
Por vezes, (e essencialmente se não havia sinais evidentes de coelho saltar), o Alfredo emprestava-me por curtíssimos períodos de tempo, a espingarda.
Mas, de quando em vez, lá se ouvia: “Alfre...eedo”, e agora também, Fidalgo, Fiii...dalgo”.
Mas nem Alfredo nem Fidalgo pareciam ouvir; o Alfredo, porque ainda lhe restavam 2 cartuchos, o Fidalgo, porque o faro lhe dizia que por perto havia coelho.
Meio da manhã, o Sol a apertar e o cão já cansado, mas a voz continuava: “Alfreedo”; “Fidaaalgo”
Então o Fidalgo, fiel amigo (porque estafado e sem perspectivas de coelhos por perto) decidiu-se a ir ter com o dono, todo lampeiro e todo “sorrisos”.
Nós por sua vez, em cima de uma fraga, ficamos à espera dos acontecimentos, pois sem cão, a caçada estava “feita”.
Daí a pouco lá aparece velhote esbaforido mais o Fidalgo, que porque já tinha levado dois biqueiros, o acompanhava de rabo entre as pernas todo submisso e com ar comprometido (ele deveria saber, lá no seu pensamento de cão, que tinha feito asneira).
“Vais pagá-las seu “lafráu”, tu vais ver o que te espera” ia resmungando o pai acenando para o Alfredo.
“Entrega-me imediatamente a espingarda seu safardana”.
Então o Alfredo, qual senhor da situação, muito direito e descontraído dirige-se ao pai, e, quando este se encontrava à distancia aí de uns 50 metros, pousa a arma no chão, e ala que por aqui é que é o caminho.
Eu, escondido e assustado vejo o percurso que ele toma, e não tardo a seguir-lhes os passos, ao mesmo tempo que vejo pelo “rabo do olho” o velhote resignado, mas curiosamente com algum entusiasmo, iniciar o seu dia de caça.
“Porra”! diz-me o Alfredo quando me junto a ele; “podíamos ter “racozido” mais um coelhote com estes dois cartuchos” (os que havia extraído da arma, não por cuidado, mas sim a pensar na sua utilidade para a próxima).
Estas foram as únicas palavras até casa, e pelo que me pareceu, a única coisa que o “chateou” de facto, nessa inesquecível manhã em que nos tornamos verdadeiramente viciados pela caça.

Luis Guimarães

Anónimo disse...

Histórias da caça
1970- Torre de Dona Chama



Chamava-se Benfica; era um cão preto, médio grande e de raça indeterminada.
Aprendeu a caçar por necessidade (e de que forma extraordinária!), pois os restos de caldo sobrantes apenas lhe cabiam nos dias de festa que eram raros.
O proprietário deste distinto espécime, era o Diamantino, não se sabe se pelo facto de o ter criado, ou se o adoptou quando lhe descobriu a habilidade.
Ao Diamantino não repugnava nada repartir os produtos caçados, pois embora lhe não faltasse o caldo, de carne já se não dirá tanto.
O Diamantino era um sapateiro da Vila (a minha Torre D. Chama), bom companheiro e amigo de aturar a garotada nas tardes quentes e de ócio das férias de verão, enquanto batia a sola para os esfarrapados sapatos que os pobres donos persistiam em manter.
Era uma figura simples que eu estimava muito.
A última vez que o vi, foram passados mais de 20 anos deste episódio, a sair do Hospital de Mirandela, desdentado e com o seu belo cabelo ondulado de outrora todo desgrenhado, aonde lhe perguntei se estava doente e se eu poderia ser prestável em alguma coisa.
Agradeceu dizendo que esteve mal mas que se encontrava em franca recuperação, e não precisava de nada (nunca quis usar dos nossos préstimos, dinheiro ou influência em momento algum).
Dias depois soube que tinha morrido, sem queixumes e sozinho, pois a antiga rapaziada e sua companhia , estava dispersa por este Portugal, bem de vida mas só ausentes, porque a notícia tardou em chegar .
Bem, mas deixamos as coisas tristes e voltamos à história que quero partilhar, em sua memória.
Quando pelos meus dezasseis anos consegui a minha primeira espingarda, uma “espanhola” sem documentos, calibre 16, a dedicação à caça redobrou, mas estava deveras incompleta. Faltava um coelheiro.
Como os meus pais não me autorizaram à aquisição de um, vali-me então do Diamantino, que sem rogos, todos os Domingos fazia o favor de me tirar da cama ainda de noite, para matar o vício dos três: o dele, o do Benfica e o meu.
O Benfica tinha um instinto como jamais vi para a caça, mas por falta de educação e de regras, obrigava-nos a caçar de acordo com a sua vontade e não ao contrário como normalmente acontece.
Ele escolhia os locais a “bater” e as horas de regressar a casa, e nós limitavam-nos a acompanhá-lo.
O pior mal do cão, é que caçava longe, sempre longe, e não adiantava chamá-lo, pois era quando ele mais se distanciava.
Nem parecia o “nosso cão”.
Um belo dia, porque me “cheirou” à Guarda Venatória (e na verdade eu até os cheirava), debandei num ápice do “termo”, enquanto o diabo esfregou um olho.
O Diamantino, por já sem pernas como as minhas, e porque aparentemente não estava a transgredir, (pois nem arma tinha), ficou muito acomodado como se da agricultura andasse a tratar.
O Benfica, como de costume, continuou a caçar a uns bons trezentos metros de distância.
A Venatória abordou então o Diamantino, interrogando se o cão que ali caçava tinha licença, ao que este respondeu que o cão não era seu, nem nunca o tinha visto por perto.
A discussão manteve-se por algum tempo no: “o cão é seu e vai ser multado” e, “eu não tenho cão algum e aquele lá ao longe, vi-o hoje pela primeira vez”
Nisto, e quando a Autoridade estava já meio convencida, o danado cão aproximou-se e começou a esfregar-se nas pernas do dono.
Perante tal, um Agente da Venatória questionou o Diamantino sobre não conhecer o cão e este lhe não sair devolta das pernas.
O Diamantino só dizia, “xô cão, fora daqui”, “desaparece maldito, que eu nem sequer te conheço” (seguido de alguns pontapés), mas o cão cada vez mais manifestações de amizade demonstrava.
O Guarda então, num rasgo de moral que nem antigamente nem hoje é muito comum, adivinhando a pobreza do homem e o seu embaraço, deixou-o ir em paz sem multa ou repreensão.
Ainda hoje me interrogo, porque bem próximo escondido e já sem espingarda (que havia deposto num silvado) apreciei toda a cena:
- que raio deu àquele malfadado cão, que nunca respondia a um chamamento ou se aproximava amistoso, para fazer toda aquela “fita”?
Acreditem ou não, mas nos vários anos de caça em que aqueles dois me acompanharam, não voltei a ver nada semelhante por parte daquele animal.

Luis Guimarães